25 de jun. de 2020

Bom coração

 

Lembro-me da minha infância, com muita saudade, quando vivi momentos únicos e que  trago comigo, até hoje. Deles tirei bons aprendizados consequentemente, maturidade.

Os Natais tinham outro sabor, literalmente, os doces, mais especificamente: o beijo baiano, aquelas bolachas redondas, cobertas com chocolate e, que nenhuma pessoa, que utilize prótese dentária, ousa morder.

Porém, quando elas chegavam para nós, os três irmãos, filhos de um casal de comerciantes, era a maior alegria, ao abrirmos o pacote, lembro que a pequena sala, de chão de madeira, recendia o aroma vindo daquelas bolachas.

Meus irmãos, e eu, aprendemos cedo o que era trabalho, o quanto era importante a responsabilidade, e o que deveríamos esperar da vida.

 Nada nos era dado gratuitamente, o que tínhamos era com o árduo trabalho do meu pai e de minha mãe, mas um fato específico é vívido em minhas melhores lembranças de um passado tão diferente, tão distante da atual realidade juvenil, em nosso país.

Um par de chinelos gasto pelo tempo de uso.

Suas tiras eram vermelhas, se não fossem de borracha, diria a vocês que elas brilhavam, tamanho cuidado e higiene que eu tinha com ele, o meu velho e único par de chinelos, o qual ficava sempre do lado de fora da porta, pois como eu o utilizava para meus afazeres externos, não era comum entrarmos em casa com o mesmo calçado, assim deixávamos os calçados sujos, do lado de fora da porta.

 A noite passou, noutro dia, minha mãe pediu para eu levar o leite até o vizinho, eram duas garrafas, e a casa ficava a uns dois quarteirões da minha.

Peguei as garrafas, coloquei-as na cesta, cobri com um pano, e abri a porta.

Fui pronta para calçar os chinelos, mas meus pés

encontraram apenas o vazio, sabem aquela sensação desconfortável, como se um buraco no chão se abrisse, e você fosse caindo sem conseguir se agarrar em nada?

 Pois bem, foi justamente isso que aconteceu.

Meus chinelos sumiram. Exclamei em meus pensamentos, jamais aconteceu algo assim aqui, por isso, confiávamos em todos, mas, sempre há uma primeira vez para tudo.

E justo comigo!

O que diria aos meus pais? Como iria entregar as compras?

Não podia me dar ao luxo de perder um calçado, não naquele momento, em épocas de vacas magras, como costumeiramente dizíamos. Eu tinha responsabilidades, e precisava entregar a encomenda.

Não poderíamos perder mais uma venda, a única opção foi calçar os sapatos de ir à missa, isso ou a galocha, que era utilizada para ajudar meu pai, na lida com os animais no pasto.

Entrei em casa sorrateiramente, pois não queria que os olhos da minha mãe fossem diretos para as garrafas de leite, ainda em minhas mãos, calcei os sapatos e saí.

 No caminho, ainda inconformada, reclamei baixo sobre o fato, ao meu lado, passava uma senhora, cabelos bem brancos, um xale de crochê nas costas, sorriso nos lábios, me cumprimentou, e, entre  dentes soltei um, bom dia. Ela intrigada, percebeu que algo estava errado.

Indagou-me :-Em um dia tão lindo, o que a aborrece?

Não conhecia aquela senhora, não ia contar algo tão íntimo a ela.

E, se ela contasse à minha mãe?

Apenas abanei a cabeça e segui meu caminho.

Na volta, ainda incrédula, pensava em como contar sobre o meu descuido. Quando olhei em volta, vi um menino, deveria ter uns quatro aninhos.

Corria de um lado para o outro, camiseta suja, com vários rasgos, um calção marrom escuros cabelos rapados, ele sorria e corria  era uma risada tão gostosa, que por um momento eu esqueci o que havia acontecido.

Com certeza, este menino não era dali, pois na época, meu bairro era pequeno, e conhecíamos a todos.

Talvez algum migrante que passava por ali, mas, ao olhar para baixo, e perceber o que havia em seus pés, congelei.

Os meus chinelos, agora já sujos de terra, em seus

pequenos pés ,na hora, meu sangue ferveu.

Ele era uma criança, mas precisava saber que o que fez não estava certo.

Aproximei-me:- Olá, menino, venha aqui!

Ele parou me olhou, e chamou pela mãe.

Uma senhora veio lá do fundo enxugando as mãos no velho avental:- pois não? Ela indagou.

- Senhora, desculpe incomodar, mas os chinelos que o seu filho está usando são meus, e, tenho certeza disso.

Ela não sabia o que dizer. Pediu para o filho entrar.

Então, aproximou-se da cerca, e disse:- Desculpe! Eu não agi certo.

Chegamos ontem, viemos de muito longe. Estávamos com fome, sede, cansados, caminhamos muitos quilômetros, outros conseguimos carona. Sei que a moça não tem nada com isso, mas só Deus sabe o quanto foi difícil para mim e  meu filho chegarmos aqui com vida.

- Eu entendo, mas pegar sem permissão não é o caminho – argumentei.

- Eu sei, porém, o meu menino, esse que você viu correndo, nunca tinha visto um calçado assim. Eu nunca pude dar a ele algo assim. O pouco que temos, mal dá para a comida, e quando passamos em frente a sua casa, ele garrou (sic) os chinelos e não quis mais largar. Eu juro por Deus, nosso Senhor, que eu ia hoje, lá falar com vocês. Consegui por um milagre essa família aqui que abrigou, eu e meu filho. Estou trabalhando agora, e vou pagar tintin por tintin  pelo seu chinelo. Mas, por misericórdia, não o tira do meu menino, não!

E, de repente, lágrimas começaram a molhar o rosto daquela mulher.

   Ali estava uma mãe, desesperada, que passara por muito sofrimento, com um filho pequeno e, sozinha no mundo. Só Deus sabia o que ela estava sentindo.

Retirei o pequeno pano que cobria as garrafas de leite e, ofereci para secar-lhes as lágrimas. Constrangida, ela agradeceu. Apenas pediu, encarecidamente para que eu não contasse nada à patroa dela, senão ela perderia o emprego.

- Está tudo bem, fique com o chinelo. Não o tirarei do seu filho.

Abaixei-me, peguei a cesta, e continuei rumo a minha casa.

Quando uma voz já conhecida me chamou. Olhei de canto de olho, era aquela senhora de cabelos brancos e xale nas costas, que conversara comigo, há pouco.

Ela falava baixo, não queria ser notada.

- Olá, menina. Agora entendi o motivo de sua tristeza. Ouvi toda a história.

Abaixei a cabeça.

- Não se envergonhe, disse ela. Você só tinha esse par de chinelos?

 Assenti.

- Essa mulher com quem você acabou de conversar, nunca soube como é a maciez de um chinelo como o seu, só tem calos e bolhas nos pés, mal escondidos por um sapato velho e rasgado. Seu pequeno, o menino, que há pouco sorria e se divertia, nunca teve o prazer de experimentar a leveza da borracha protegendo as solas dos seus pequenos pés, da ardência do chão.

Essa casa é minha, era de minha família, voltei morar aqui ontem mesmo, e recebi essa senhora e seu filho porque preciso de ajuda, mas eu não conhecia a história dela, ainda não tive tempo para conversar.

Vamos fazer uma coisa? Venha comigo ao armazém da vila, vamos comprar roupas e sapatos para essa mãe e seu filho! Ela estava tão empolgada, que eu não tive como negar.

Apenas passei em casa e tranquilizei minha mãe. Entreguei o dinheiro do leite e segui com a bondosa senhora.

Ela comprou muitas roupas, voltamos, o sol estava se pondo.

- Gostou da nossa tarde, menina?

- Muito! – exclamei.

- Espere, isso é para você.

Olhei para a mão da senhora, uma caixa amarela se destacava.

- Tome, abra!

Abri, dentro, um par de chinelos.

Olhei para ela, devolvendo a caixa, pois não podia aceitar.

- Você vai aceitar. É o meu presente para você. Aprenda: quem ajuda, é ajudado.

A Lei Divina é assim. Hoje, você sairá daqui com uma lição apreendida: a vida é um ciclo.

Ninguém que dá amor recebe pedras você aceitou as desculpas daquela mãe, e deu o seu único par de chinelos àquele menino. Devolvo os a você!

 Ela entrou, fiquei um tempo com a caixa nas mãos olhando lá dentro, pela janela, um pequeno menino continuava pulando, ora abraçando sua mãe, ora se escondendo atrás do sofá.


A carta que nunca chegou

    Tarde cinza, vento forte fazia os galhos das árvores dançarem no jardim. Eu precisava finalizar a mudança que começara há dois anos,...