25 de abr. de 2024

O porta-retratos

 

Foto do google

 

 

Era quase uma da manhã, lembro-me que estava inquieta naquela madrugada, talvez pelo vento, que fazia o galho bater na janela do meu quarto insistentemente, ou por não conhecer a casa que acabara de comprar.

 Pelo anúncio, ela parecia menor, mas ao entrar, conhecer cada espaço, foi amor à primeira vista, com direito a decorar cada local com a minha imaginação. No momento, a minha decoração real incluía um colchão de ar, dois travesseiros, um edredom e uma caneca de café no chão.

Eu estava ansiosa, na verdade, tudo era novo ali, a casa, os vizinhos, a cidade, a cultura, porém, eu estava animada e feliz pela minha escolha.

Havia feito um excelente negócio, uma casa ainda bem conservada, por um preço irrisório, comparado ao “boom” no preço dos imóveis atualmente, a transação foi ótima.

Havia dois ou três móveis, que foram deixados para trás. Observando de perto, dava para entender o motivo: eram antigos, pesados e encaixados no cômodo. Eu teria um certo trabalho, com certeza.

Mas, voltando àquela noite posso afirmar que mudaria de vez a minha vida.

Como não conseguia dormir, e nada de televisão ou celular para me distrair, resolvi explorar um pouco mais a casa, a minha casa.

Levantei, apertei um pouco mais o nó do roupão, pois estava frio. Deixando a sala, passei pela cozinha, havia duas grandes janelas, por elas, eu conseguia ver algumas árvores e um pequeno lago. Imaginei o sol refletido naquela água, com certeza, daria para esquecer do tempo olhando por ela. Um pouco à frente, um pequeno corredor levava para os quartos, eram três. Um deles, futuramente, seria meu local de trabalho e leitura, cujo livro estava ansiosa para desencaixotar. Mais à frente um banheiro, não era muito grande, mas para mim tinha o mais importante: uma banheira, onde eu poderia relaxar, enquanto deixava alguma música da minha coletânea tocar.

Voltando para a sala, no canto uma pequena lareira, que iria ser muito útil no dia seguinte. Antes de entrar na casa, percebi que havia um pequeno depósito coberto com vários pedaços de lenha, já cortados. Ainda sobre à lareira havia um pequeno porta-retratos, mas sem foto alguma.

A luz, ainda que fraca do poste, iluminava aquela pequena peça. Era um tom escuro, esculpida à mão. Peguei para ver melhor os detalhes, fui até à janela, na esperança de iluminar um pouco mais. Percebi a delicadeza nos contornos e percebi que algo estava escrito, não a caneta, ou a lápis, mas era como se alguém esquentasse a ponta do ferro e, encostasse na peça formando cada palavra. Havia uma dedicatória, assinada e datada.

"Que o dia de hoje não seja apenas uma lembrança para o nosso- retrato". Sempre seu, Antônio. 20/10/1934.

Não era possível! Um tesouro em minhas mãos! Uma sensação de conforto e tristeza tomaram conta do meu coração. Lágrimas vinham, sem entender, molhando meu rosto.

Eu simplesmente precisava sentir, precisava tocar, uma última vez. Mas como? Nunca antes eu estivera ali. Antônio? Aquele ano? Impossível descrever e entender as emoções que se encontravam em mim. Eu segurava aquela pequena peça contra meu corpo, como se ali estivesse o sentimento mais puro e verdadeiro, a personificação do amor e, eu precisava cuidar, proteger. Sentei-me sobre o colchão, ainda com a peça na mão e, os olhos molhados.

Olhando para a janela, o som daquele galho batendo, fechei os olhos, e fui levada, por um instante, a um passado dentro daquela casa.

Havia pessoas, sorrisos, músicas, bebidas, era uma festa, era o meu casamento. Abri os olhos, minha respiração estava acelerada. Naquele momento soltei a peça, o som dela no chão, ecoou pela casa.

Definitivamente, não estava entendendo mais nada.

O que era aquilo tudo? Eu estava tão feliz, mas um pouco diferente, mais nova, mas eu sabia que era eu. Um rapaz estava ao meu lado, recebendo cumprimentos. Eu estava tão feliz, um pequeno buquê de margaridas estava entre minhas mãos. Foi tudo tão rápido, como num piscar de olhos. Aquilo tudo me deixou exausta, deitei em posição fetal, cobri minhas pernas e dormi, profundamente.

No sonho, eu estava em uma plantação de lavanda. O aroma das flores impregnava minhas roupas. O mesmo jovem do meu casamento estava ali comigo, com as mãos para trás pedindo para eu fechar os olhos.

Um pouco receosa, fechei.

-Pode abrir!

Nas suas mãos, um embrulho, em papel marrom, com um barbante em volta. Olhei para ele muito curiosa. Abri, dentro do pacote, um pequeno porta-retratos, feito à mão. Ele pediu:

- Vire a peça!

Ao virar encontrei uma frase escrita: "Que o dia de hoje não seja apenas uma lembrança para o nosso porta-retratos". Sempre seu, Antônio. 20/10/1934.

Abraçamo-nos e, eu acordei. Mais confusa, sem entender, coloquei a mão no chão e senti o porta-retratos. Já estava amanhecendo. Eu precisava entender o que significava tudo aquilo, ou era a minha imaginação que havia ficado tão fértil de repente.

A cidade era pequena, e muitos ainda dormiam. Encontrei uma pequena livraria, um sebo, para ser exata. Uma senhora veio sorridente me atender, chegando mais perto, ela parou, o sorriso deu lugar a uma expressão de espanto, ela balbuciou: - Renata?!...

Eu respondi: -Olá senhora, me chamo Bernarda, como vai?

-Não pode ser!

Naquele momento eu sabia que estava no lugar certo. Mostrei para ela o porta-retratos, a frase, e contei sobre a sensação e o sonho que tive.

Ela pediu para eu esperar, e voltou com um pequeno álbum. Colocou sobre a mesa e disse:

-Abra e entenda!

Meu olho não entendia como era possível a moça dos meus sonhos estar naquelas fotos, sim! Era ela ou melhor, era eu! Tirei a foto do plástico, atrás, estava escrito: Renata Dantas, 1934. Parece que toda a história se passou naquele ano, o que de fato a senhora confirmou. Ela me contou que trabalhou alguns anos para os últimos donos, os últimos herdeiros daquela casa. Falou que eles eram felizes ali, mas devido a uma dívida, o banco a tomou. E o final, daquela história, era eu. Ela pegou a foto, olhando fixamente disse:

- Ela te chamou de volta, ela queria a verdadeira e única dona aqui. Confesso que nunca acreditei nessas coisas…

Quando virei a outra folha do álbum, duas moças se abraçavam felizes, e uma pequena criança segurava na barra da saia de uma delas. Elas pareciam funcionárias, pelas vestimentas. O que foi confirmado pela senhora. Elas também trabalharam na casa.

Ela começou a me apresentar cada personagem daquele álbum, as moças da foto eram primas, Sofia e Fabíola, a pequena era filha de Sofia, seu nome era Deise. Naquele dia, havia um casamento na casa, e os empregados também tiraram fotos como lembrança, Sofia aproveitou para trazer sua filha junto, para ter uma lembrança. Infelizmente, naquele mesmo dia, de sorrisos e alegrias, o pai de Renata apareceu no meio da festa, ele era contra o casamento. Renata era muito rica, e por mais que Antônio tivesse dinheiro, o pai dela tinha certeza, de que ele só estava se casando pelo dote.

A confusão estava armada, e para não colocar a vida de Antônio em risco, Renata aceitou ir embora com seu pai, com a promessa a Antônio, de voltar ainda naquela noite, escondida para eles fugirem.

Mas ela nunca mais voltou. Bernarda não tinha se dado conta do tempo que ali estava, precisava voltar para esperar o caminhão com o restante da mudança, com a promessa de que voltaria outro dia, para saber mais sobre a família e a casa.

Volte sim, minha querida, temos muito o que conversar.

Antes de ir, Bernarda guardou o porta-retratos, e disse:

- Foi um prazer imenso conhecer a senhora, até outro dia!

A senhora fechou a porta, e vestiu seu avental para começar seu trabalho. No lado direito, abaixo da gola, o nome bordado, Deise Dantas. Ela fechou o álbum e viu Bernarda se afastando em direção à casa.

13 de mar. de 2024

A carta que nunca chegou

 



 

Tarde cinza, vento forte fazia os galhos das árvores dançarem no jardim. Eu precisava finalizar a mudança que começara há dois anos, naquele dia estava decidida a isso.

Sentei-me no chão frio do quarto, a última caixa findaria “ a saga da mudança”. O estilete seguia a linha no meio da caixa de papelão, cortando a fita, abri as abas da caixa.

Fotos, cadernos, rascunhos, canetas e memórias pulavam dela o tempo todo, a cada foto que eu pegava. Em cada papel fotográfico, um cheiro, uma saudade, ou uma dúvida.

Fotos fazem tantas coisas em nossas almas, embaralham nossos pensamentos e nos levam para tempos que, às vezes, não queremos revisitar, porém nosso inconsciente (ou consciente), não nos permite jogar aquele pedaço do tempo, no lixo.

Fui esvaziando a caixa, e enchendo a minha mente, no fundo, um pedaço de papel amarelo, dobrado três vezes. Abri.

Era uma carta datada de 1962. O que me causou uma certa estranheza, foi a escrita, não a reconheci como de ninguém próximo a mim. Ajeitei um pouco o corpo, recostando minhas costas na cama para ler.

“Minha querida Laura...”,

Com certeza não era de ninguém da minha família ou círculo próximo.

“... hoje não foi um dia fácil pois, estar longe de você é intolerável. Eu poderia esperar para lhe dizer tudo pessoalmente, porém, tenho a sensação de que isso, não será possível. No primeiro porto, providenciarei o envio desta carta. Talvez consiga com o Milton, da loja de penhores, sempre muito prestativo e atencioso com a nossa história, com o nosso amor.  Sei da desaprovação da sua família, jamais quiseram o nosso amor. Meus pensamentos, assim como as lágrimas rolam de saudade. Tenha a certeza de, que podem me mandar para o outro lado do mundo, eu acharei uma forma de sempre chegar até você.

Sempre seu,

Estácio.

25/08/1962”.

Uau, foi o que saiu ao finalizar a carta. É claro que meus pensamentos voaram para 1984, no meio do mar, aquele infinito, um homem solitário, um papel e uma caneta. Um porto, um amigo confidente, um amor proibido, um romance digno de streaming. Eu queria saber mais, queria saber se Laura e Estácio ficaram juntos para concretizar o amor, se foi Milton quem entregou a carta para ela. Mas não sabia nem por onde começar, ou melhor... talvez eu soubesse sim.

A caixa eu lembrava, havia pego em uma pequena mercearia, na minha antiga cidade. Talvez de lá saíssem mais respostas.

Olhei no relógio, já passavam das cinco horas da tarde. Se eu saísse naquele instante, chegaria naquela mesma noite. Guardei a carta na bolsa, troquei de roupa e saí. Eram quase dez horas da noite quando cheguei ao portal da minha cidade. Um suspiro me fez lembrar que nada havia mudado em muitos anos, um dos motivos que me fez ir embora. O mais irônico, é que sou uma mulher ligada às novidades, tecnologias e estava justamente voltando ao passado com uma das formas mais antigas de comunicação: a carta.

Antes de ir ao hotel, eu precisava ter a certeza, de que, o mercadinho ainda existia, por mais que eu soubesse que sim, precisava constatar. Lá estava ele, “La Barca Mercearia”. A mesma fachada, a mesma vitrine, com certeza os mesmos donos. Naquela hora, a cidade já dormia. Saí do carro, fui até a porta, bati no vidro. Esperei alguns minutos, e lá estava o senhor Gusmão, proprietário da loja, apertando os olhos por detrás das grossas lentes dos seus óculos para tentar reconhecer, quem batia àquela hora.

Eu disse: -Sou eu, senhor Gusmão, a Andréa. Como vai?

 Sorriu e virou a chave abrindo a porta.

- Quanto tempo menina! Estou bem e você? O que faz a essa hora, está de volta?

- Na verdade, só quero esclarecer uma dúvida.

- Entre, o que você precisa?

- Encontrei esta carta em uma caixa que o senhor me deu, no dia da minha mudança. O senhor a reconhece?

Seus olhos marejados, leram cada linha.

- Então estava com você?

- Eu a coloquei na caixa, deveria ter sumido com ela, mas não consegui. Vi a caixa vazia, e a deixei ali, até resolver o que fazer. Quando você entrou pedindo caixas, achei que era um sinal, e não pensei duas vezes. Pelo menos esta porcaria iria para longe e, nunca mais eu teria remorso ao ler estas linhas.

- Desculpe, não estou entendendo nada.

Ele respirou fundo, passou as mãos no rosto e balbuciou algo, que eu simplesmente não entendi.

- Não escutei senhor Gusmão, o que o senhor disse?

- Eu sou o Milton.

-  O Milton da loja de penhores?

- Sim, o Milton da loja de penhores, o Milton amigo, o Milton confidente e o Milton que destruiu duas vidas, três, na verdade.

- Mas como... o seu nome... o seu sobrenome. Nunca me atentei a isso, nunca soubemos o seu nome.

- Quando eu cheguei aqui, estava disposto a apagar tudo. Mas esta carta era uma triste sentença. Laura estava prometida a um outro homem, família importante, sobrenome, fatos que a gente acha que só existem em filmes. Quando eu conheci Estácio, ele me apresentou Laura apenas falando dela para mim. Dia após dia, me apaixonei por ela. Ele viajava muito, muitos meses longe, e eu fui me aproximando dela, me passando por Estácio, nas cartas. Ele as mandava para que eu as entregasse. Eu abria, lia e treinava a caligrafia. Mudava algumas palavras, as que eu queria dizer para ela, dobrava em três partes, como ele fazia. Foram anos e anos, por migalha de um amor que nem era para mim. Esta carta, foi a última notícia que eu tive dele. Eu não estava na loja quando ele a deixou, abri e li, senti como uma despedida. Isso significava que era o fim para mim também, e esta carta nunca chegou até ela. E nenhuma outra chegou até a minha loja. Não sei se o mar o levou em definitivo, ou se ele está por aí, vagando sem destino pensando nela. Por minha causa, esta carta nunca chegou, ela nunca teve mais notícias dele, e decidiu assumir o acordo que os pais haviam feito. Tempos depois ela estava casada, com filhos e indo embora para outro país. Nessa história toda perdi um amigo e um amor. Abandonei tudo e vim para cá. Mas o passado veio junto.

- O senhor não teve mais notícias dela?

- Nunca mais.

- Senhor Gusmão, encerre essa história. Mande a carta para ela.

- Não posso.

- O senhor deve isso a eles.

Um silêncio gritante dominou o ambiente.

Ela foi para Cremona, Itália.  

- É a sua história, o senhor precisa dar um ponto final.

- Não preciso, não vou. A vergonha não me permite. Por favor, vá embora.

Antes de sair, guardei a carta. Na vidraça, o reflexo de um homem arrasado pelo seu passado. Aquela história não era minha. O ponto final não poderia ser dado por mim. Entrei no carro, tudo aquilo não me permitiria dormir. Passei no posto, abasteci, liguei o carro, dobrei a esquina e segui rumo à minha cidade, deixando o passado onde deveria ficar. Às vezes, algumas histórias, não precisam de um ponto final, pelo simples fato de que, talvez, elas nunca tenham. Abri a janela e, antes de pegar a rodovia, a carta voou da minha mão e foi para longe. Mais uma vez.

O porta-retratos

  Foto do google     Era quase uma da manhã, lembro-me que estava inquieta naquela madrugada, talvez pelo vento, que fazia o galho bater...