Lembro-me da
minha infância, com muita saudade, quando vivi momentos únicos e que trago comigo, até hoje. Deles tirei bons aprendizados
consequentemente, maturidade.
Os Natais
tinham outro sabor, literalmente, os doces, mais especificamente: o beijo
baiano, aquelas bolachas redondas, cobertas com chocolate e, que nenhuma
pessoa, que utilize prótese dentária, ousa morder.
Porém,
quando elas chegavam para nós, os três irmãos, filhos de um casal de
comerciantes, era a maior alegria, ao abrirmos o pacote, lembro que a pequena
sala, de chão de madeira, recendia o aroma vindo daquelas bolachas.
Meus irmãos,
e eu, aprendemos cedo o que era trabalho, o quanto era importante a
responsabilidade, e o que deveríamos esperar da vida.
Nada nos era dado gratuitamente, o que
tínhamos era com o árduo trabalho do meu pai e de minha mãe, mas um fato específico
é vívido em minhas melhores lembranças de um passado tão diferente, tão distante
da atual realidade juvenil, em nosso país.
Um par de
chinelos gasto pelo tempo de uso.
Suas tiras
eram vermelhas, se não fossem de borracha, diria a vocês que elas brilhavam, tamanho
cuidado e higiene que eu tinha com ele, o meu velho e único par de chinelos, o
qual ficava sempre do lado de fora da porta, pois como eu o utilizava para meus
afazeres externos, não era comum entrarmos em casa com o mesmo calçado, assim deixávamos
os calçados sujos, do lado de fora da porta.
A noite passou, noutro dia, minha mãe pediu
para eu levar o leite até o vizinho, eram duas garrafas, e a casa ficava a uns
dois quarteirões da minha.
Peguei as
garrafas, coloquei-as na cesta, cobri com um pano, e abri a porta.
Fui pronta
para calçar os chinelos, mas meus pés
encontraram
apenas o vazio, sabem aquela sensação desconfortável, como se um buraco no chão
se abrisse, e você fosse caindo sem conseguir se agarrar em nada?
Meus
chinelos sumiram. Exclamei em meus pensamentos, jamais aconteceu algo assim
aqui, por isso, confiávamos em todos, mas, sempre há uma primeira vez para
tudo.
E justo
comigo!
O que diria
aos meus pais? Como iria entregar as compras?
Não podia me
dar ao luxo de perder um calçado, não naquele momento, em épocas de vacas
magras, como costumeiramente dizíamos. Eu tinha responsabilidades, e precisava
entregar a encomenda.
Não
poderíamos perder mais uma venda, a única opção foi calçar os sapatos de ir à
missa, isso ou a galocha, que era utilizada para ajudar meu pai, na lida com os
animais no pasto.
Entrei em
casa sorrateiramente, pois não queria que os olhos da minha mãe fossem diretos
para as garrafas de leite, ainda em minhas mãos, calcei os sapatos e saí.
Indagou-me :-Em
um dia tão lindo, o que a aborrece?
Não conhecia
aquela senhora, não ia contar algo tão íntimo a ela.
E, se ela contasse à minha mãe?
Apenas abanei a cabeça e segui meu caminho.
Na volta,
ainda incrédula, pensava em como contar sobre o meu descuido. Quando olhei em
volta, vi um menino, deveria ter uns quatro aninhos.
Corria de um
lado para o outro, camiseta suja, com vários rasgos, um calção marrom escuros cabelos
rapados, ele sorria e corria era uma
risada tão gostosa, que por um momento eu esqueci o que havia acontecido.
Com certeza,
este menino não era dali, pois na época, meu bairro era pequeno, e conhecíamos
a todos.
Talvez algum
migrante que passava por ali, mas, ao olhar para baixo, e perceber o que havia
em seus pés, congelei.
Os meus
chinelos, agora já sujos de terra, em seus
pequenos pés
,na hora, meu sangue ferveu.
Ele era uma
criança, mas precisava saber que o que fez não estava certo.
Aproximei-me:-
Olá, menino, venha aqui!
Ele parou me
olhou, e chamou pela mãe.
Uma senhora
veio lá do fundo enxugando as mãos no velho avental:- pois não? Ela indagou.
- Senhora,
desculpe incomodar, mas os chinelos que o seu filho está usando são meus, e,
tenho certeza disso.
Ela não
sabia o que dizer. Pediu para o filho entrar.
Então,
aproximou-se da cerca, e disse:- Desculpe! Eu não agi certo.
Chegamos ontem, viemos de muito longe. Estávamos com fome, sede, cansados, caminhamos muitos quilômetros, outros conseguimos carona. Sei que a moça não tem nada com isso, mas só Deus sabe o quanto foi difícil para mim e meu filho chegarmos aqui com vida.
- Eu
entendo, mas pegar sem permissão não é o caminho – argumentei.
- Eu sei,
porém, o meu menino, esse que você viu correndo, nunca tinha visto um calçado
assim. Eu nunca pude dar a ele algo assim. O pouco que temos, mal dá para a
comida, e quando passamos em frente a sua casa, ele garrou (sic) os chinelos e
não quis mais largar. Eu juro por Deus, nosso Senhor, que eu ia hoje, lá falar
com vocês. Consegui por um milagre essa família aqui que abrigou, eu e meu
filho. Estou trabalhando agora, e vou pagar tintin por tintin pelo seu chinelo. Mas, por misericórdia, não
o tira do meu menino, não!
E, de
repente, lágrimas começaram a molhar o rosto daquela mulher.
Ali estava uma mãe, desesperada, que passara por muito sofrimento, com um filho pequeno e, sozinha no mundo. Só Deus sabia o que ela estava sentindo.
Retirei o
pequeno pano que cobria as garrafas de leite e, ofereci para secar-lhes as
lágrimas. Constrangida, ela agradeceu. Apenas pediu, encarecidamente para que
eu não contasse nada à patroa dela, senão ela perderia o emprego.
- Está tudo
bem, fique com o chinelo. Não o tirarei do seu filho.
Abaixei-me,
peguei a cesta, e continuei rumo a minha casa.
Quando uma
voz já conhecida me chamou. Olhei de canto de olho, era aquela senhora de
cabelos brancos e xale nas costas, que conversara comigo, há pouco.
Ela falava
baixo, não queria ser notada.
- Olá,
menina. Agora entendi o motivo de sua tristeza. Ouvi toda a história.
Abaixei a
cabeça.
- Não se
envergonhe, disse ela. Você só tinha esse par de chinelos?
- Essa
mulher com quem você acabou de conversar, nunca soube como é a maciez de um
chinelo como o seu, só tem calos e bolhas nos pés, mal escondidos por um sapato
velho e rasgado. Seu pequeno, o menino, que há pouco sorria e se divertia,
nunca teve o prazer de experimentar a leveza da borracha protegendo as solas
dos seus pequenos pés, da ardência do chão.
Essa casa é
minha, era de minha família, voltei morar aqui ontem mesmo, e recebi essa
senhora e seu filho porque preciso de ajuda, mas eu não conhecia a história
dela, ainda não tive tempo para conversar.
Vamos fazer
uma coisa? Venha comigo ao armazém da vila, vamos comprar roupas e sapatos para
essa mãe e seu filho! Ela estava tão empolgada, que eu não tive como negar.
Apenas
passei em casa e tranquilizei minha mãe. Entreguei o dinheiro do leite e segui
com a bondosa senhora.
Ela comprou
muitas roupas, voltamos, o sol estava se pondo.
- Gostou da
nossa tarde, menina?
- Muito! –
exclamei.
- Espere,
isso é para você.
Olhei para a
mão da senhora, uma caixa amarela se destacava.
- Tome,
abra!
Abri,
dentro, um par de chinelos.
Olhei para
ela, devolvendo a caixa, pois não podia aceitar.
- Você vai
aceitar. É o meu presente para você. Aprenda: quem ajuda, é ajudado.
A Lei Divina
é assim. Hoje, você sairá daqui com uma lição apreendida: a vida é um ciclo.
Ninguém que
dá amor recebe pedras você aceitou as desculpas daquela mãe, e deu o seu único
par de chinelos àquele menino. Devolvo os a você!
Marli, minha querida amiga, que texto maravilhoso!!! Saio daqui muito emocionada, com um nó na garganta. Em plena pandemia, fragilizadas e inseguras que estamos, ler um texto, esse teu conto... dá muito o que pensar.Fluiu numa cadência só a minha leitura! Amiga, fazia tempo que eu não lia algo assim, que me parasse...
ResponderExcluirAplausos pra você!!
Um bom fim de semana, cuide-se, sabes como está o Brasil...
Beijo, meu carinho.
Mostrou ser uma pessoa de bonito coração
ResponderExcluirCumprimentos
UAU! Que linda e tão emocionante narrativa.Adorei! Como faz bem ler algo assim! Beleza! lindo fds! bjs, chica
ResponderExcluirUm texto que nos leva à infância de outrora tempos! Amei🌹
ResponderExcluir~~
Sinto em mim uma força interior
Beijo e uma excelente Sexta Feira
Olá, boa noite!
ResponderExcluirComo eram diferentes esses belos tempos
Pelo menos, em muitas coisas...
Saudações poéticas!
Comovente a sua história minha querida Amiga. Gostei muito de a ler.
ResponderExcluirUma boa semana com muita saúde.
Um beijo.
Bom dia de muita paz,querida amiga Marli
ResponderExcluirTambém confio que não receberemos pedras ...
Formos todo nosso Amor, amiga.
Esteja bem, cuide-se!
Tenha dias abençoados!
Bjm carinhoso e fraterno de paz e bem
ResponderExcluirBoa noite Marli!
Esta sua crônica, “Bom coração”, deixa a seus leitores uma inesquecível lição de vida. A narrativa pende-nos diante das dificuldades pelas quais passa a família. Talvez o chinelo, o único calçado da personagem, represente bem o contraste social daquela família honesta e trabalhadora com o pouco que tem para viver. Tudo vinha da honestidade e do trabalho. O sofrimento também se faz presente, mas a força de vontade vence os obstáculos. Meus parabéns, minha amiga!Meus votos de uma boa sexta-feira e um bom final de semana, com os cuidados com a saúde Marli.
Um abraço.
Pedro
Uma linda história que me emocionou.
ResponderExcluirDeus te abençoe muito.
Élys.
Texto lindo
ResponderExcluirOlá, querida Marli!
ResponderExcluirSeus textos têm sempre tanto interesse, quer eles sejam realidade ou ficção.
Entendo o seu desespero, qdo não viu seus chinelos do lado de fora da porta, e não havia pandemia nessa época-rs, mas naquele tempo não havia ladrões.
Entendo a explicação que teria de dar para sua mãe perante o desaparecimento dos mesmos, pois tudo o que vocês tinham era fruto de muito trabalho.
A senhora de xaile foi relevante no seu conto, não só qdo a abordou na 1ª vez, mas também qdo foram fazer compras para aquela família tão pobre. Menino nunca tinha tido sapato, pobrezinho!
A senhora do xaile soube muito bem compensar sua tristeza, lhe dando outro par de chinelos, que a deixaram, decerto, mto feliz.
A mãe do menino pobre continuaria a ter emprego e você e o menino chinelos. Que gesto lindo e de amor!
Beijos, se cuide e boa semana.
Uma história comovente que emociona o leitor.
ResponderExcluirGostei muito do seu conto, é maravilhoso.
Bom resto de semana, querida amiga Marli.
Beijo.