Estava ouvindo uma contadora de histórias, que havia se
voluntariado para atender um grupo pequeno de crianças. Eu por conhecê-las
resolvi ficar no fundo da sala. E a professora estava contando histórias sobre
as diferenças de viver no campo/ roça e na cidade. Começou perguntando se
alguém já havia vivido no campo, dando sequência, perguntou às crianças quem já
havia tomado leite quentinho tirado da vaca. Fez uma introdução relatando como
ela mesma esperava com uma canequinha esmaltada, junto ao vovô, que tirava o
leite. Continuou falando que era muito bom, pois o vovô deixava até uma
espuminha sobre o leite. Era delicioso sentir aquele aroma e sabor frescos, bem
branquinho, era inexplicável. Percebeu que nenhuma criança havia se
manifestado, e estavam com os olhinhos arregalados. Intrigada, ela repetiu a
pergunta. E nada. De repente, ouvimos uma vozinha sumida dizendo:- eu nunca
tomei leite de vaca, só de caixinha, que meu pai compra no mercado. Então as
crianças foram criando coragem e falando:- eu também não, eu também não. Uma
delas completou; na minha casa nem tem vaca, mas tomamos leite sempre, vem na
caixinha ou no pacote. Quieta, porém surpresa percebi que aquelas crianças não
sabiam que o leite vinha da vaca. E que ela não dá leite, pois precisa ser
tirado. Houve um silêncio enorme, e, enquanto a professora dava uma aula sobre
o assunto desconhecido pela maioria das crianças, eu viajei nas minhas
reminiscências da infância. Quando meu avô ordenhava as vacas, era um tempo
bom, esperava para tomar o leite quentinho, meus primos quando iam visitar o
vovô, também aproveitavam o momento maravilhoso, e cada um de nós possuía a sua
canequinha esmaltada, algumas até com o esmalte machucado. Hoje a situação é
diferente. Penso que não há mais esta condição gostosa de tomar leite tirado na
hora. Meu avô, recebia a ajuda de um moço para o trabalho que fazia. Vovô
precisava levantar todos os dias pelas quatro e meia da madrugada, para separar
o bezerro da vaca, pois se os deixasse juntos ele acabaria mamando todo o
leite. Este ritual acontecia sempre, mesmo aos domingos e feriados. É claro que
era reservado o leite para o filhote.
Interessante contar que na hora de tirar o leite, o que era
feito todos os dias, meu avô amarrava as patas traseiras da vaca, para que ela
ficasse bem quietinha, e não desse um coice nele enquanto a ordenhava, fato
curioso na época, e que mexia comigo era que o bezerro ficava amarrado perto da
mãe, um lugar onde ela pudesse vê-lo, porque assim ela soltava o leite,
pensando que era para o filho, mas na verdade ia para o balde. Às vezes, o
bezerro não queria sair, ficava deitado tranquilo, longe da mãe, o que
dificultava que ela soltasse o precioso líquido. Mas logo tudo se ajeitava e o
leite descia.
Meu avô morava próximo de outros leiteiros, e logo um
deles, mas abastado adquiriu ordenhas mecânicas. Fomos convidados para conhecer
a tal máquina que tirava o leite sozinha. Era meio assustador, mas a
modernidade é assim. O vizinho de vovô estava muito feliz, pois tudo ficou mais
fácil. E o dinheiro veio mais rápido.
Lembrei do Lima Duarte que falou: E o olhar da vaca? E o amor da vaca ao soltar o leite? Perdeu-se
com nosso modo de viver. Bebemos o leite sem o amor da vaca.
Nem precisam do bezerro, aplicam hormônio natural, e ela
libera o leite. Sabemos que ainda existem muitos leiteiros que fazem a ordenha
manual, não é proibido, mas não haverá mais adultos, que tenham uma história
linda da canequinha com leite cheio de espuma, tirado na hora. Porém, ainda
existe o “camargo”, a origem deste nome falaremos em outra oportunidade.
Os gaúchos da Serra, certamente, já ouviram falar sobre a
bebida deliciosa chamada camargo. O assunto sempre volta quando os dias frios
chegam. Ele é a combinação do café quente com o leite tirado direto da vaca. O
resultado é uma bebida forte e saborosa, que pode não agradar a todos os
gostos, mas que, segundo os adeptos da tradição, garante um calorzinho nas
manhãs congelantes do inverno. “Uma das principais características da bebida é
ser preparada e consumida logo de manhã cedo, na primeira ordenha do dia. Faz
bastante sentido: o trabalho no campo exige uma opção rápida e que forneça
energia.”
Com certeza sem a canequinha esmaltada e sem o olhar da
vaca.