31 de mar. de 2022

Leite sem o olhar da vaca





Estava ouvindo uma contadora de histórias, que havia se voluntariado para atender um grupo pequeno de crianças. Eu por conhecê-las resolvi ficar no fundo da sala. E a professora estava contando histórias sobre as diferenças de viver no campo/ roça e na cidade. Começou perguntando se alguém já havia vivido no campo, dando sequência, perguntou às crianças quem já havia tomado leite quentinho tirado da vaca. Fez uma introdução relatando como ela mesma esperava com uma canequinha esmaltada, junto ao vovô, que tirava o leite. Continuou falando que era muito bom, pois o vovô deixava até uma espuminha sobre o leite. Era delicioso sentir aquele aroma e sabor frescos, bem branquinho, era inexplicável. Percebeu que nenhuma criança havia se manifestado, e estavam com os olhinhos arregalados. Intrigada, ela repetiu a pergunta. E nada. De repente, ouvimos uma vozinha sumida dizendo:- eu nunca tomei leite de vaca, só de caixinha, que meu pai compra no mercado. Então as crianças foram criando coragem e falando:- eu também não, eu também não. Uma delas completou; na minha casa nem tem vaca, mas tomamos leite sempre, vem na caixinha ou no pacote. Quieta, porém surpresa percebi que aquelas crianças não sabiam que o leite vinha da vaca. E que ela não dá leite, pois precisa ser tirado. Houve um silêncio enorme, e, enquanto a professora dava uma aula sobre o assunto desconhecido pela maioria das crianças, eu viajei nas minhas reminiscências da infância. Quando meu avô ordenhava as vacas, era um tempo bom, esperava para tomar o leite quentinho, meus primos quando iam visitar o vovô, também aproveitavam o momento maravilhoso, e cada um de nós possuía a sua canequinha esmaltada, algumas até com o esmalte machucado. Hoje a situação é diferente. Penso que não há mais esta condição gostosa de tomar leite tirado na hora. Meu avô, recebia a ajuda de um moço para o trabalho que fazia. Vovô precisava levantar todos os dias pelas quatro e meia da madrugada, para separar o bezerro da vaca, pois se os deixasse juntos ele acabaria mamando todo o leite. Este ritual acontecia sempre, mesmo aos domingos e feriados. É claro que era reservado o leite para o filhote.

Interessante contar que na hora de tirar o leite, o que era feito todos os dias, meu avô amarrava as patas traseiras da vaca, para que ela ficasse bem quietinha, e não desse um coice nele enquanto a ordenhava, fato curioso na época, e que mexia comigo era que o bezerro ficava amarrado perto da mãe, um lugar onde ela pudesse vê-lo, porque assim ela soltava o leite, pensando que era para o filho, mas na verdade ia para o balde. Às vezes, o bezerro não queria sair, ficava deitado tranquilo, longe da mãe, o que dificultava que ela soltasse o precioso líquido. Mas logo tudo se ajeitava e o leite descia.

 

Meu avô morava próximo de outros leiteiros, e logo um deles, mas abastado adquiriu ordenhas mecânicas. Fomos convidados para conhecer a tal máquina que tirava o leite sozinha. Era meio assustador, mas a modernidade é assim. O vizinho de vovô estava muito feliz, pois tudo ficou mais fácil. E o dinheiro veio mais rápido.

 

Lembrei do Lima Duarte que falou: E o olhar da vaca?  E o amor da vaca ao soltar o leite? Perdeu-se com nosso modo de viver. Bebemos o leite sem o amor da vaca.

 

Nem precisam do bezerro, aplicam hormônio natural, e ela libera o leite. Sabemos que ainda existem muitos leiteiros que fazem a ordenha manual, não é proibido, mas não haverá mais adultos, que tenham uma história linda da canequinha com leite cheio de espuma, tirado na hora. Porém, ainda existe o “camargo”, a origem deste nome falaremos em outra oportunidade.

 

Os gaúchos da Serra, certamente, já ouviram falar sobre a bebida deliciosa chamada camargo. O assunto sempre volta quando os dias frios chegam. Ele é a combinação do café quente com o leite tirado direto da vaca. O resultado é uma bebida forte e saborosa, que pode não agradar a todos os gostos, mas que, segundo os adeptos da tradição, garante um calorzinho nas manhãs congelantes do inverno. “Uma das principais características da bebida é ser preparada e consumida logo de manhã cedo, na primeira ordenha do dia. Faz bastante sentido: o trabalho no campo exige uma opção rápida e que forneça energia.”

 

Com certeza sem a canequinha esmaltada e sem o olhar da vaca.


7 comentários:

  1. Boa tarde de paz, querida amiga Marli!
    Já alguns lindos contos na tarde aqui, mas tenho que lhe confessar que o campo me interessa de modo ímpar.
    Ficou muito gostoso de ler e me prendeu a atenção do início ao fim.
    Parabéns por nos contar coisas relevantes.
    Tenha dias abençoados de paz, saúde e Amor!
    Beijinhos

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  2. Te ler faz um bem ! Escreves lindamente e adorei teu conto, tendo até o Camargo,rs.. Adorei! beijos, tudo de bom e essa vida do campo é bem diferente da nossa! chica

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  3. Muito bom!
    Quando era jovem, os meus Pais tinham vacas leiteiras. Vendíamos e também bebíamos. Era uma maravilha!
    *
    Embriaguei meu coração ...

    Beijos. Boa noite

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  4. Em pequeno um vizinho tinha duas vacas leiteiras. Eu levava um púcaro, mugia a vaca e bebia o leite quente. Maravilha.
    .
    Um domingo feliz …Saudações cordiais
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    Pensamentos e Devaneios Poéticos
    .

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  5. As crianças de agora desconhecem muitas coisas. Vem tudo do supermercado... É pena! As suas lembranças são tão ternurentas. Posso imaginá-la a beber o leite quentinho da vaca que o seu avô ordenhava.
    Uma boa semana com muita saúde.
    Um beijo.

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  6. Marli querida, essas lembranças são maravilhosas, que recordações terão as crianças de hoje, ou de alguns anos atrás? Smarthfones? Televisão com filmes violentos?
    Tínhamos amigos que tinham sítios, fazendas e tomei o 'camargo', não é para esquecer nunca, que vida gostosa, era natureza, animais, campo, liberdade. Pena que tudo isso se perdeu ou diminuiu muito. Hoje, os 'congelados' estão aí, também!
    É, o leite de caixinha consumimos, mas nunca será uma recordação...
    Um beijinho, amiga, saúde e paz pra você e família.

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  7. Olá, Marli, gostei muito de ler essa sua bela crônica, que me fez lembrar o leite tirado da vaca e também de São Joaquim, cidade serrana de Santa Catarina, onde vivi até meus11 anos de idade. Aí desde sempre tomava, diariamente, esse leite quente tirado da vaca pelo meu pai.
    Ali e meus irmãos ficávamos com a caneca na mão esperando a sua vez. Ora, meu pai tirava o leite puro, ora o leite com café, chamado camargo.
    Uma maravilha.
    Gostei imensamente de sua crônica!
    Votos de muita saúde e alegria para a família.
    Um abraço.

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