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Era quase
uma da manhã, lembro-me que estava inquieta naquela madrugada, talvez pelo
vento, que fazia o galho bater na janela do meu quarto insistentemente, ou por
não conhecer a casa que acabara de comprar.
Pelo anúncio, ela parecia menor, mas ao
entrar, conhecer cada espaço, foi amor à primeira vista, com direito a decorar
cada local com a minha imaginação. No momento, a minha decoração real incluía
um colchão de ar, dois travesseiros, um edredom e uma caneca de café no chão.
Eu estava
ansiosa, na verdade, tudo era novo ali, a casa, os vizinhos, a cidade, a
cultura, porém, eu estava animada e feliz pela minha escolha.
Havia feito
um excelente negócio, uma casa ainda bem conservada, por um preço irrisório, comparado
ao “boom” no preço dos imóveis atualmente, a transação foi ótima.
Havia dois
ou três móveis, que foram deixados para trás. Observando de perto, dava para
entender o motivo: eram antigos, pesados e encaixados no cômodo. Eu teria um
certo trabalho, com certeza.
Mas,
voltando àquela noite posso afirmar que mudaria de vez a minha vida.
Como não
conseguia dormir, e nada de televisão ou celular para me distrair, resolvi
explorar um pouco mais a casa, a minha casa.
Levantei,
apertei um pouco mais o nó do roupão, pois estava frio. Deixando a sala, passei
pela cozinha, havia duas grandes janelas, por elas, eu conseguia ver algumas
árvores e um pequeno lago. Imaginei o sol refletido naquela água, com certeza,
daria para esquecer do tempo olhando por ela. Um pouco à frente, um pequeno
corredor levava para os quartos, eram três. Um deles, futuramente, seria meu
local de trabalho e leitura, cujo livro estava ansiosa para desencaixotar. Mais
à frente um banheiro, não era muito grande, mas para mim tinha o mais importante:
uma banheira, onde eu poderia relaxar, enquanto deixava alguma música da minha
coletânea tocar.
Voltando
para a sala, no canto uma pequena lareira, que iria ser muito útil no dia
seguinte. Antes de entrar na casa, percebi que havia um pequeno depósito
coberto com vários pedaços de lenha, já cortados. Ainda sobre à lareira havia
um pequeno porta-retratos, mas sem foto alguma.
A luz, ainda
que fraca do poste, iluminava aquela pequena peça. Era um tom escuro, esculpida
à mão. Peguei para ver melhor os detalhes, fui até à janela, na esperança de
iluminar um pouco mais. Percebi a delicadeza nos contornos e percebi que algo
estava escrito, não a caneta, ou a lápis, mas era como se alguém esquentasse a
ponta do ferro e, encostasse na peça formando cada palavra. Havia uma
dedicatória, assinada e datada.
"Que o
dia de hoje não seja apenas uma lembrança para o nosso- retrato". Sempre
seu, Antônio. 20/10/1934.
Não era
possível! Um tesouro em minhas mãos! Uma sensação de conforto e tristeza
tomaram conta do meu coração. Lágrimas vinham, sem entender, molhando meu
rosto.
Eu
simplesmente precisava sentir, precisava tocar, uma última vez. Mas como? Nunca
antes eu estivera ali. Antônio? Aquele ano? Impossível descrever e entender as
emoções que se encontravam em mim. Eu segurava aquela pequena peça contra meu
corpo, como se ali estivesse o sentimento mais puro e verdadeiro, a
personificação do amor e, eu precisava cuidar, proteger. Sentei-me sobre o
colchão, ainda com a peça na mão e, os olhos molhados.
Olhando para
a janela, o som daquele galho batendo, fechei os olhos, e fui levada, por um
instante, a um passado dentro daquela casa.
Havia
pessoas, sorrisos, músicas, bebidas, era uma festa, era o meu casamento. Abri
os olhos, minha respiração estava acelerada. Naquele momento soltei a peça, o
som dela no chão, ecoou pela casa.
Definitivamente,
não estava entendendo mais nada.
O que era
aquilo tudo? Eu estava tão feliz, mas um pouco diferente, mais nova, mas eu
sabia que era eu. Um rapaz estava ao meu lado, recebendo cumprimentos. Eu
estava tão feliz, um pequeno buquê de margaridas estava entre minhas mãos. Foi
tudo tão rápido, como num piscar de olhos. Aquilo tudo me deixou exausta,
deitei em posição fetal, cobri minhas pernas e dormi, profundamente.
No sonho, eu
estava em uma plantação de lavanda. O aroma das flores impregnava minhas
roupas. O mesmo jovem do meu casamento estava ali comigo, com as mãos para trás
pedindo para eu fechar os olhos.
Um pouco
receosa, fechei.
-Pode abrir!
Nas suas
mãos, um embrulho, em papel marrom, com um barbante em volta. Olhei para ele
muito curiosa. Abri, dentro do pacote, um pequeno porta-retratos, feito à mão.
Ele pediu:
- Vire a
peça!
Ao virar
encontrei uma frase escrita: "Que o dia de hoje não seja apenas uma
lembrança para o nosso porta-retratos". Sempre seu, Antônio. 20/10/1934.
Abraçamo-nos
e, eu acordei. Mais confusa, sem entender, coloquei a mão no chão e senti o porta-retratos.
Já estava amanhecendo. Eu precisava entender o que significava tudo aquilo, ou
era a minha imaginação que havia ficado tão fértil de repente.
A cidade era
pequena, e muitos ainda dormiam. Encontrei uma pequena livraria, um sebo, para
ser exata. Uma senhora veio sorridente me atender, chegando mais perto, ela
parou, o sorriso deu lugar a uma expressão de espanto, ela balbuciou: -
Renata?!...
Eu respondi:
-Olá senhora, me chamo Bernarda, como vai?
-Não pode
ser!
Naquele
momento eu sabia que estava no lugar certo. Mostrei para ela o porta-retratos,
a frase, e contei sobre a sensação e o sonho que tive.
Ela pediu
para eu esperar, e voltou com um pequeno álbum. Colocou sobre a mesa e disse:
-Abra e
entenda!
Meu olho não
entendia como era possível a moça dos meus sonhos estar naquelas fotos, sim! Era
ela ou melhor, era eu! Tirei a foto do plástico, atrás, estava escrito: Renata
Dantas, 1934. Parece que toda a história se passou naquele ano, o que de fato a
senhora confirmou. Ela me contou que trabalhou alguns anos para os últimos
donos, os últimos herdeiros daquela casa. Falou que eles eram felizes ali, mas
devido a uma dívida, o banco a tomou. E o final, daquela história, era eu. Ela
pegou a foto, olhando fixamente disse:
- Ela te
chamou de volta, ela queria a verdadeira e única dona aqui. Confesso que nunca
acreditei nessas coisas…
Quando virei
a outra folha do álbum, duas moças se abraçavam felizes, e uma pequena criança
segurava na barra da saia de uma delas. Elas pareciam funcionárias, pelas
vestimentas. O que foi confirmado pela senhora. Elas também trabalharam na
casa.
Ela começou
a me apresentar cada personagem daquele álbum, as moças da foto eram primas,
Sofia e Fabíola, a pequena era filha de Sofia, seu nome era Deise. Naquele dia,
havia um casamento na casa, e os empregados também tiraram fotos como
lembrança, Sofia aproveitou para trazer sua filha junto, para ter uma
lembrança. Infelizmente, naquele mesmo dia, de sorrisos e alegrias, o pai de
Renata apareceu no meio da festa, ele era contra o casamento. Renata era muito
rica, e por mais que Antônio tivesse dinheiro, o pai dela tinha certeza, de que
ele só estava se casando pelo dote.
A confusão
estava armada, e para não colocar a vida de Antônio em risco, Renata aceitou ir
embora com seu pai, com a promessa a Antônio, de voltar ainda naquela noite,
escondida para eles fugirem.
Mas ela
nunca mais voltou. Bernarda não tinha se dado conta do tempo que ali estava,
precisava voltar para esperar o caminhão com o restante da mudança, com a
promessa de que voltaria outro dia, para saber mais sobre a família e a casa.
Volte sim,
minha querida, temos muito o que conversar.
Antes de ir,
Bernarda guardou o porta-retratos, e disse:
- Foi um
prazer imenso conhecer a senhora, até outro dia!
A senhora
fechou a porta, e vestiu seu avental para começar seu trabalho. No lado
direito, abaixo da gola, o nome bordado, Deise Dantas. Ela fechou o álbum e viu
Bernarda se afastando em direção à casa.
Bom dia de Paz, querida amiga Marly!
ResponderExcluirExcelente conto!
Eu creio nas "coincidências" que a vida nos vai revelando...
Que bom ter voltado a blogar!
Tenha dias abençoados!
Beijinhos com carinho fraterno