4 de jul. de 2012

Conto: Refúgio ( by Fernanda Andrucho )


Eu estava andando pela rua um pouco pensativa. Quando me tornei assim? Sempre fechada, sozinha. Como as pessoas me irritam. Eu não pertenço a este mundo, é como se houvesse um acordo tácito entre ele e eu. O acordo demorou para acontecer. Antes eu era apontada, zombada por meus trajes negros. Agora? Tentam imitar. Espartilhos! Corpetes! Coturnos! Tolos... Eu precisava de um mundo só meu.

Olhe, pessoas vem vindo pela rua deserta e mal iluminada. A agústia invade minha mente, meu corpo se sente sufocado. Fobia social? Pânico? Chamem como quiserem. Olho ao meu redor, procuro algum lugar escuro onde me sinta segura. Algum lugar obscuro onde eu me reencontre. Não há nada, só becos e nada mais. Mas com o que eu me depararia ali? Espere, há um prédio antigo mais a frente. Talvez se eu andar mais rápido consiga entrar antes que as pessoas cheguem perto.

Risadas. Abaixo a cabeça e acelero o passo. O vento bate com força contra meu corpo. A imagem do meu sobretudo se armando como uma capa de vampiro preenche minha mente. Meus coturnos, meia-canela, estão desamarrados. O cadarço se arrasta pelo chão como correntes de um presidiário em fuga. Concentro-me para não pisar em cima deles.

Alcanço o prédio, finalmente. Parece abandonado. A porta, inutilmente trancada, encontra-se quebrada. Passo pela fresta. O tule da minha saia arranha minhas coxas pálidas que nunca pegaram sol.

O prédio internamente estava coberto de poeira que irritou meu nariz. Espero. Quase que instantaneamente meus olhos se acostumam com a tão adorada escuridão. A agonia vai embora, meu corpo vai lentamente relaxando e só então percebi o quanto minha respiração estava acelerada. Minhas costelas doiam com a pressão das barbatanas de aço do espartilho.

As risadas, que estavam cada vez mais altas, começaram a se afastar.


Pela primeira vez me perguntei onde eu havia entrado. Era algum tipo de recepção. Do que será?

Uma luz fraca me atraiu para dentro de uma sala. Ao seguir a luz descubro a resposta que queria. Era uma biblioteca.

Uma vela grossa tentava iluminar as estantes de livros que a cercava. E, talvez, pela ironia do destino, ao me esconder de pessoas, o que eu encontro? Mais pessoas. Um garoto lia ali, sob aquela luz trêmula.

Fiquei parada, apenas observando. O menino demorou para notar minha presença, que se camuflara no silêncio carregado de segredos das inúmeras vozes que aquele cômodo guardava. Ao afastar o olhar das palavras que o envolviam, ele me viu. Depois que o espanto em seu rosto se dissipara, direcionou seu olhar para um banco ao seu lado, no qual me sentei.

Aquela fora a primeira noite que passamos ali. Eu, Joseph, este era seu nome, e as inúmeras vozes. Era maravilhoso. Era como se o mundo que eu tanto almejava estivesse ali, escondido por aquelas paredes. As coisas tristes, melancólicas, tornavam-se belas naquele lugar.

Era inacreditável. Meu mundo existia!

Na primeira noite, o medo me dominara na hora de sair de lá. Ao atravessar a porta, olhei para todos os lados para ver se havia alguém. Foi então que eu percebi que nunca mais sairia do meu mundo e o medo se dissipara, pois a voz de Poe ecoara dentro de mim: “Noite, noite e nada mais”. O silêncio da noite fora quebrado pela minha risada e por nenhuma outra.

Passaram-se meses assim, até que tentaram arrancá-lo de mim.

O prédio fora comprado. Em pouco tempo de reforma as prateleiras de livros seriam substituídas por prateleiras de roupas, o silêncio por vozes histéricas e a escuridão da noite por luzes das vitrines. Será que venderiam corpetes? Tolos...

O meu medo, meu pânico, minha fobia, eu não sei o quê, mas o quê quer que seja voltou aos poucos.

Eu estava, novamente, andando por aquela rua. Pensei que encontraria pessoas curiosas olhando através das vitrines da nova loja, mas, para o meu alívio, a rua parecia ser apenas um cenário abandonado por seus atores. 

Assim que eu passei pela frente da vitrine, uma voz ecoou dentro de mim.

“Por que é que as coisas têm que ser assim? E o que faz a felicidade do homem se tranformar também a fonte de sua desgraça?”. Fora Werther que abrira as portas para todos os meus fantasmas. Goethe, Baudelaire, Nietzsche, Álvaro de Campos, Augusto dos Anjos, todos bradavam dentro de mim.

“Vivendo ou morrendo, que importa?”

“Queria abrir-me uma veia que me alcançasse a liberdade eterna”

“Se queres matar-te, mata-te...”

“Nunca mais as goteiras cairiam

Como propositais setas malvadas

No frio matador da madrugada

Por sobre o coração dos que sofriam”

“Esgotamos todas as nossas forças em satisfazer nossas necessidades, que apenas tendem a prolongar uma existência miserável; quando constato que a tranquilidade a respeito de certas questões não passa de resignação sonhadora, como se a gente estivesse pintando as paredes entre as quais jazemos presos com feições coloridas e perspectivas risonhas, tudo isso me deixa mudo”

“De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas a que chamamos mundo?”

“Que resta das cabeças que pensaram?

E afundado nos sonhos mais nefastos

Ao pegar um milhão de miolos gastos

Todos os meus cabelos se arrepiam”

“Soturnos funerais deslizam tristemente

Em minh’alma sombria. A sucumbida Esperança

Lamenta-se, chorando; e a Angústia, cruelmente

Seu negro pavilhão sobre meus ombros lança!”

“Não saúdes como eu a morte em literatura”

“E estais velha! De vós o mundo é farto,

E hoje, que a sociedade vos enxota,

Somente as bruxas negras da derrota

Frequentam diariamente vosso quarto!”

“Todos os mortos pode ser que sejam

Vivos noutra parte

Todos os meus próprios momentos passados

Pode ser que existam algures”

Eu já estava em casa quando todas as vozes foram se calando e Álvares de Azevedo usurpava o lugar delas para embalar o meu sono.

“O que sofres? Que dor desconhecida

Inunda de palor teu rosto virgem?

Por que tu’alma dobra taciturna,

Como um lírio a um bafo de infortúnio?

Por que tão melancólica suspiras?”

Adormeci. Mas, no meio da noite, algo me acordou. Gosto de pensar que Joseph passara a mão em meu rosto. Quando levantei, chamei por ele e a resposta que recebi estava sobre meu criadomudo. Um livro. Mas não um livro qualquer. Sua capa de couro liso, sem título algum, protegia páginas em branco, exceto a primeira, na qual estava escrito:

“Sophie,

O mundo que conhecemos juntos nunca acabará. Não deixe de visitá-lo. Aceite este livro e o manterá nosso refúgio sempre por perto. Escreva aqui um conto fantástico sobre um amor proibido, protegido pelos olhares de uma fada peregrina.

J.”


Fernanda Andrucho




13 comentários:

  1. Gasparzinho4/7/12 22:56

    Denso, irriquieto, surreal.
    Comecei a ler e não parei até o "ponto" do J.
    Gostinho de quero mais nos olhos.
    Penso que este mundo existe sim, e não pertence apenas ao J. ou à Sophie.
    Todos nos sentimos sozinhos às vezes, ou estranhos neste mundo.
    Quem nunca se sentiu observado por outros como numa grande vitrine?
    Fantástico!
    Abraços do Amiguinho camarada.

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  2. Olá Gasparzinho,meu amigo camarada,o texto que acabou de ler foi escrito por minha sobrinha e afilhada.Desde criança,hoje um pouquinho mais crescida,ela lia muito e começou a escrever.Sua escrita realmente é densa,mas ao mesmo tempo nos deixa com vontade de ler mais.Senti-me fazendo parte dos personagens,pois este mundo descrito pela Fernanda existe,é muito real.Obrigada pela visita e comentário.Um abraço!

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  3. Fernanda,minha querida menina,seu texto pede mais ,então deve dar continuidade a ele,pois eu quero ler a sequência.Uma escrita muito louca, cheia de metáforas que nos aguçam os sentidos,nos deixa alertos para o que vamos ler nas próximas linhas.Fez uso de paradoxos que se encaixaram em todos os parágrafos.Nada linear,mas que se finda em linha reta.Òtimo! Parabéns,pode considerar-se uma escritora.Ainda quero prefaciar seu livro.Beijos da madrinha.

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  4. Belo texto!
    Parabéns a autora e a você que publicou!

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    1. Milton,obrigada pela visita e comentário.A autora é minha afilhada,meu maior incentivo a ela.Um grande abraço!

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  5. Ótimo texto, Marli, parabéns à sua sobrinha, que coloque no papel outros tantos... Vê-se que tem o dom da escrita.

    Grande beijo às duas.
    Tais

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    1. Tais,suas palavras têm grande peso,pois como escritora sabe muitíssimo bem avaliar um texto quando o lê.Obrigada pela visita e comentário.Um grande abraço!

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  6. Sem duvida uma ficcionista de primeira água...talento imenso...precisa apenas de domar algumas palavras...

    Doce beijo

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  7. Olá,obrigada pelas palavras de incentivo.Sua visita e comentário só nos fazem bem.Volte sempre.Um grande abraço!

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  8. Belo texto! Adorei!
    Espero que a Fernanda continue escrevendo e aprimorando cada vez mais sua habilidade com as palavras. Tenho certeza que ela vai longe!

    Grande abraço,
    Rogério Cardoso.

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  9. Olá Rogério,Realmente,é o que desejamos também,que ela continue a escrever,aprimorando sua escrita .Obrigada! Grande abraço!

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  10. Parabéns! Tens o dom da escrita e isso é uma bênção! Lindo, vou seguir.
    Um ótimo domingo pra ti! Bjo.

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  11. Olá Marisete,obrigada pela visita e por seguir-me.
    Desejo a você um excelente final de semana.beijos!

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O porta-retratos

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