21 de set. de 2013

Apenas uma vez mais


Aquele dia ela resolveu fazer a faxina do ano

Do ano retrasado, mas antes tarde do que nunca

Sempre deve-se começar no quarto

Esvaziar as gavetas

Tantas roupas compradas e ainda com etiquetas

Maldito capitalismo selvagem!

Tantos pares de sapatos, casacos, jaquetas, blusas, saias, vestidos...

Que seriam necessárias duas novas vidas para serem usados

Abriu a caixa de papelão e ligou o botão automático

As roupas foram caindo, sapatos, casacos, blusas, uns sobre os outros

Sem olhar muito, sem maiores lembranças daqueles tecidos ou cores

Levaria para o Abrigo na rua das Flores, atrás da Igreja da Getúlio com a 24 de Maio

A caixa foi enchendo, o guarda-roupa esvaziando

Deixaria apenas o necessário, talvez dois vestidos pretos, para enterros ou casamentos ( que para ela era como enterro )

Lá no fundo, quase imperceptível, um velho moletom

Ao tocá-lo, a maciez daquele velho pano entre seus dedos, obrigando-a a fechar os olhos

E voltar no tempo...

Aquela terça feira de dezembro, cinzenta, fria...

Eram 4h. da manhã

Acabara de voltar da festa de fim de ano do trabalho, aquela que só fora porque ficara chato dizer não pelo 5º. ano consecutivo

Tomara um banho quente, vestira o moletom e deitou-se

O telefone tocara quebrando o silêncio ensurdecedor daquela noite

Seu coração acelerado, tateou no escuro o aparelho

Um fio de voz do outro lado, sôfrego, dizia que sentia saudades

Ela não respondeu nada

As lágrimas rolaram, encharcando o aparelho

Ela só queria correr e abraçar seu amor

Voltar para o tempo em que se amaram sem pudor, em que se entregaram como se fossem uma só alma

Mas o tempo era cruel, e não permitia voltas

Do outro lado a ligação fora encerrada, mas ela ainda ficara um tempo ouvindo o “tum-tum” do telefone, que já ritmava com o seu coração

Abriu os olhos, estava novamente em seu quarto, em frente ao guarda roupa, segurando entre os dedos o velho moletom

Ela não queria mais essas lembranças em sua vida, ela queria recomeçar mas seu coração sempre a traia e trazia de volta lembranças boas de um bom tempo

Aquele moletom que estava sobre a poltrona da sala, embrulhado em um pacote pardo, envolto a um laço vermelho

E acompanhado de um pequeno bilhete: “para quando eu estiver longe, vista-o e sinta-me abraçando-a com todo o meu amor”

O presente mais simples e mais belo que ganhara

Depois do telefonema, fora retirado de sua vida definitivamente, colocado em um canto qualquer do guarda roupa, mas não jogado fora

Jogá-lo fora era impossível, não se joga fora um amor

Fechou a caixa, lacrou-a, no outro dia a levaria para  o abrigo

Deitou-se na cama, braços sob a cabeça, olhar fixo no teto

Filmes curtos passando em sua mente, como podia um velho pano trazer tantas lembranças em seus fios?

Ela queria esquecer

Ela queria cantar novamente, sorrir, entregar-se por completo

Ligar e dizer com todas as sílabas: eu esqueci você

Mas isso seria impossível, sentia-se fraca diante de tanto sentimento

Só de lembrar do sorriso, do cheiro, do abraço, do motivo do moletom

Seu corpo arrepiava

Naquela noite, ela retirou o moletom do armário, tomou um demorado banho

Vestiu sua melhor roupa, seu melhor calçado

Perfumou-se

Passou em uma livraria, comprou o papel mais bonito, e embrulhou o moletom

Tocou a campainha duas vezes, apenas

A porta abriu-se minutos depois, como se a esperasse

Olhos nos olhos

Estendeu o pacote

- Esta noite está fria, você vai precisar disso

Ao fundo, no aparelho da sala, pôde ouvir Clarice Falcão:

“ polícias abaixem as armas, e troquem carícias, que a gente voltou”

... porque só se ama uma vez na vida.
mb

9 comentários:

  1. Bom dia e excelente Domingo

    Excelente historia, gostei de ler

    beijos
    http://coisasdeumavida172.blogspot.pt/

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    1. Olá Cidália, obrigada pela visita e avaliação do meu texto. Desejo a você uma excelente semana!
      Beijos!

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  2. Gasparzinho22/9/13 10:41

    Relacionamentos são complicados, penso ser porque nós mesmos complicamos. Somos egoístas em nossas ideias e, muitas vezes, não abrimos mão. E isso acarreta problemas, desilusões, términos. O amor deve falar sempre mais alto, mas os sentimentos controversos sempre acabam vencendo. Ótimo texto, não há como não recordar alguma história incompleta. E as lembranças vêm, sejam em moletons usados, ou bilhetes.
    Abraços do amiguinho camarada.

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    1. Olá Gasparzinho, ah! relacionamentos ...
      Deixam-nos arrasados, às vezes, somos nós sempre egoístas e irracionais. E com certeza, em nossas vidas há o que recordar mesmo que seja em um simples bombom.
      Obrigada! Grande abraço!

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  3. Limerique

    Quando se abre o bau de lembrança
    Talvez olhando o tempo de criança
    Ou de certo amor passado
    Que não ficou ao nosso lado
    É como sozinho iniciar uma dança.

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  4. Olá Jair , o poeta de Limerique. Como sempre você surpreende em suas respostas com um lindo Limerique. Tentei escrever um,mas não sou poeta e sim copiadora rsssssss. Obrigada pela amável presença personificada em tão belos versos. Abraço!

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  5. BOA TARDE MINHA FLOR !
    SEUS TEXTOS ME DAR RAZÕES SEMPRE PARA UMA BOA REFLEXÃO.TEM MUITA SENSIBILIDADE E VC TRANSMITE EM CADA ESCOLHA QUE FAZES PARA POSTAR...
    DEIXO MEU BEIJO DE FINAL DE SEMANA !!!!!!!!!!!!!!!!!!!
    SAUDADESSSSSSSSS

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  6. Ler um conto onde o amor vence é inspirador. Pode-se jogar o supérfluo fora, sem tristeza, mas não se abandona um sentimento que ainda nos faz vibrar. Bjs.

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  7. Olá Marli, bela postagem, conto muito bem escrito, Parabéns!! Falar de amor é lindo e como você escreve, perfeito.
    Grata pela visita e por deixar comentário. Volte sempre aquele cantinho é nosso. Bjuss, um lindo final de semana.

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